sábado, 13 de julho de 2013



VI

Stockholmo, 30 de novembro de 1898
(pgs 82-83)

Ora, os animaes são apenas essas fórmas. São as pedras angulares do futuro edificio humano. Não teem a vida integral e consciente do todo, visto serem uma parte desse todo.

Representam a fórma tangível de uma paixão, de uma idéa, de um sentimento, de uma affeição ou mesmo de uma persuasão, a que elles correspondem: pela sua ferocidade ou mansidão, pela sua ligeireza ou inercia, pela sua manha ou lealdade, ou pela sua fórma, quer elevando-se aos ares como os arrojados pensamentos, quer solapando, escondidos no chão, como a hypocrisia e a mentira; já vivendo nas trevas das cavernas, já suspendendo os seus ninhos entre as flôres. Uns procuram a luz, como a intelligencia; outros as trevas, como a ignorancia.

No animal não existe a unidade perfeita, elle é um submultiplo, é uma divisão, e o que é dividido não póde subsistir por si próprio.

A subsistencia, sendo uma perpetua existência, só póde existir sendo integral e completa. O animal, por representar uma simples fórma de um sentimento ou de uma affeição, não póde ser eterno, mesmo porque as affeições e os sentimentos são creação da vontade esclarecida pelo entendimento humano, cuja acção se modifica á proporção que o homem se vai regenerando ou pervertendo, conforme a Liberdade que Deus lhe deu, como reflexo do Sêr unico, Infinito e Eterno, que é o próprio Creador.

Uma idéa ou affeição não póde viver por si só, mas apenas da vida transitoria que lhe empresta a vontade e o entendimento que lhe deu origem.

Como é possível, pois, que, sendo os animaes apenas as fórmas materiaes dessas idéas ou dessas affeições, possam ter alma immortal como o Sêr synthetico, que lhes deu a razão de ser da sua existência?


Si admittirmos, pois, que os animaes são as fórmas representativas das paixões, dos sentimentos e dos pensamentos humanos, vemos a analogia confirmar luminosamente esta affirmativa tão estranha e paradoxal para quem nella nunca meditou.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Cartas Perdidas




VI

Stockholmo, 30 de novembro de 1898
(pgs 81-82)

O simples vivente, sem individualidade consciente, não é um Sêr; é um existir limitado e finito, porque não está completo. É, portanto, transitorio e não Eterno. É um complemento; é uma parte, e nunca um todo.

O homem é o termo final da creação em todos os systemas planetários. É o fim para que o Universo foi creado.

Tudo quanto se creou até ao homem, era o alicerce, a base indispensável para tal fim. E essas bases, sobre as quaes o Creador collocou mais tarde a sua Imagem e Similhança, são tão indispensaveis como as pedras e os materiaes que entram na construcção de um edifício, o que não indica, de fórma alguma, que esse edificio, sendo construído desses materiaes inferiores, fossem elles próprios a origem e fim para a sua construcção.

Esses materiaes provam tão sómente a sua absoluta necessidade para que o entendimento humano se servisse delles para construir o abrigo para a sua familia, dando-lhe a fórma de lar, para as suas crenças, dando-lhe a fórma de templo, ou para as suas idéas, dando-lhes a fórma de academia.

O inferior dar origem ao superior é um absurdo identico ao effeito dar origem á causa. O inferior póde apenas servir de base ou apoio para se poder estabelecer o immediatamente superior. É esta a ordem immutavel da creação.

Existe uma antiqüissima tradição, affirmando que os animaes são: as fórmas viventes das affeições e dos pensamentos humanos.

Eis um arcano digno de ser profundamente meditado.

Partindo do principio de que não ha idéa sem fórma, segue-se logicamente que todas as nossas idéas, todas as nossas affeições, todos os nossos pensamentos, quer bons, quer máos, quer bellos, que horriveis, não pódem nunca ficar em simples abstracções espirituaes, visto que, tudo que é espiritual, sendo essencial, tende a determinar uma fórma tangível para entrar em harmonia com a natureza, que é o húmus ou a matriz em que se elaboram e completam.

sábado, 20 de outubro de 2012




VI

Stockholmo, 30 de novembro de 1898
(pgs 79-80)

Dentre a série de perguntas capciosas com que fechas a tua epistola, perguntas qual saduceu, que logar reservo para as almas dos animaes?

É realmente um dos pontos mais perturbadores do problema da immortalidade da alma, a subsistencia dos animaes. Permitta-me, pois, algumas considerações sobre o assumpto.

O homem, domesticando os animaes, empresta-lhes uma apparencia illusoria, transformando-lhes passageiramente os habitos e os costumes, obrigando-os pelo medo, pela fome e pelo castigo, a executar inconscientemente actos que parecem lhes dar fóros de intelligencia e raciocinio, e julga assim o homem transformar-lhes a natureza; mas de que elle não cogita é de que, assim que essa acção dominadora desapparece, elles voltam immediatamente á sua integridade primitiva.

O mais bem amestrado animal de hoje, é absolutamente egual em todas as suas manifestações ao seu ascendente, que viveu ha milhares de annos, quando se liberta dessa pressão artificial a que foi sujeito. E o homem, illudido pelo resultado artificial obtido, enleva-se na propria obra, e custa-lhe admittir que esse sêr vivente, cujas qualidades apparentes lhe emprestou a força, fique privado de participar tambem da immortalidade.

Em primeiro lugar, existe uma profunda differença entre seres viventes, e viventes só.

O Sêr existe pela unica razão de saber que é.

O Sêr é só proprio do homem, porque só póde existir emanado da vontade consciente, guiado pelo entendimento e esclarecido pela razão, formando assim uma entidade ternaria e completa.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012


VI

Stockholmo, 30 de novembro de 1898
(pgs 77-78)

Meu caro F. (1)

Através das phrases da tua ultima carta, distilla-se hypocritamente uma commiseração pelo meu estado morbido, morbidez prenunciadora do mysticismo em que eu facilmente me precipitarei, continuando a enveredar por tão transcendente caminho philosophico; e o ponto final com que fechas esta insinuação parece uma lagrima negra em signal de luto pela perda da minha lucidez.

Não é de hoje que me conheces. Sabes perfeitamente que em toda a minha vida me tenho dedicado sempre ás sciencias exactas.

Habituado a reduzir tudo a formulas, tive sempre o mais profundo respeito pela álgebra, mesmo quando essa sciencia precisava da hypothese como principio para poder basear-se no incommesuravel como fim.

Conservo ainda a mais subida consideração pelas definições dogmaticas que se baseiam em um principio indefinido, e tenho sempre prompto para citar uma força qualquer, afim de dar começo a qualquer phenomeno, guardando o maior segredo sobre o logar onde Ella se acoita.

Si, por acaso, essa força já está gasta ou fóra da moda, aproprio-me então de algumas fracções de energia, extrahidas da infinita e commoda fonte etherea e, armado com todo este arsenal de vibrações e ondulações, não ha mysterio que fique por desvendar... menos o mysterio desses elementos básicos, cujo segredo convém guardar para honra das corporações scientificas a que me desvaneço de pertencer.

___________
(1) A traducção desta carta tornou-se bastante difficil e incompleta, não só pelo pessimo estado em que Ella se encontra, já meio apagada pela humidade e com as ultimas paginas dilaceradas, como também por estar escripta em uma technologia especial, para a qual não encontro traducção apropriada. Contém, além disso uma estranha theoria, bastante complicada para os meus fracos recursos scientificos, em que o singular auctor prova que os numeros representam idéas concretas, propõe-se a explicar os numeros encontrados nos Livros Sagrados, inclusivamente o Apocalypse, affirmando que não representam quantidades, mas sim qualidades. O desenvolvimento destes árduos problemas deveriam encontrar-se nas paginas dilaceradas, cujas rasuras não me foi ainda possivel preencher. – N. do Traductor.

sexta-feira, 6 de julho de 2012



VI

Stockholmo, 5 de novembro de 1898
(pgs 75-76)

Em uma semente estão latentes as fórmas e as côres futuras da flôr, cuja previsão do seu desenvolvimento póde ser feita adivinhando o periodo em que ella desabrochará com todas as suas côres.

A semente de uma idéa ou de um facto deve conter latente a sua expressão definida, pois que, sendo essa expressão o seu effeito sensível, tem fatalmente de presumir-se uma causa geradora á qual se poderá chamar a semente idéal.

E assim, quando um sentido mais intenso possa, pela sua acuidade, momentaneamente liberto do peso material, estudar nesse gérmen espiritual o seu futuro desenvolvimento pela analogia derimente, a previsão de um facto futuro e perfeitamente acceitavel, apezar de desconhecermos qual a percepção que nos guiou, conduzida por esse sentido que existia latente no intimo do nosso sêr e cuja clarividência é lançada á conta de coincidencia ou no abysmo do acaso.

Oh! doce milagre tão calumniado pelos sábios, tão exagerado pelos supersticiosos e tão adulterado pelos charlatães, como o teu aspecto mysterioso e sobrenatural se vai tornando tão simples e natural! E quando, por um estado anormal do nosso corpo, o nosso sêr perscruta harmonias e vibrações inacessiveis aos sentidos grosseiros, eu prefiro descortinar nestes phenomenos a acção de sentidos novos, despertados do seu somno lethargico do que simples manifestações de loucura; e prefiro ter de caminhar só, do que, na pessima companhia das modernas escolas, taxar o genio de alienação e os grandes homens de desequilibrados, por terem a nodoa de se não parecerem com os brutos constantemente immersos nas sensações materiaes, que os animam, apenas codificando leis sobre o que os outros criam, quando não destroem essa creação no seu gérmen, tripudiando sobre Ella com as ferraduras technologicas.

Quarda-te bem dessas ferraduras, uma vez que não te pódes guardar das massadas do teu amigo
                                              W.

segunda-feira, 14 de maio de 2012


VI
Stockholmo, 5 de novembro de 1898
(pgs 74-75)



E é esse estado singular do nosso sêr que nos faz sentir um mal estar inexplicável ante a approximação de um perigo ou desgosto grave.

É elle que produz os presentimentos tantas vezes registrados, de acontecimentos notáveis, é elle que imprime a previsão dos factos futuros.

Como definir uma percepção que jaz occulta pela sombra intensa que os outros sentidos nella projectam?

Acaso é possível perscrutar o fraco gemido de um moribundo no meio do ribombar do trovão? Entretanto, elle geme.

Quem poderá descortinar no meio dos espinhos e dos abrolhos a leve margarida que se estiola por falta de luz? Lancem no fogo o mallo, e ella ostentará, garbosa, os seus encantos.

Quem poderá divisar as estrellas no meio do esplendor solar? É mistér que elle esconda o seu esplendor no manto sombrio que a terra lhe oppõe, para que esses sóes tão distantes venham impressionar a nossa retina. Si o dia fosse perpetuo, a vista humana desconheceria o universo estrellar, sem que, por isso, ellas deixassem de existir aos milhões.

Assim, essas mais íntimas e subtis percepções dos sentidos espirituaes, hoje quase obliterados pela brutalidade material, jazem latentes, prestes a affirmar a sua existência quando as circumstancias as favoreçam; mas, como a humanidade mergulha apenas nos prazeres corporaes, perdeu por completo o conhecimento dessas percepções, e quando, por circumstancias que ella ignora, a sua acção mysteriosa irrompe, inesperada, os alicerces da sciencia official estremecem sempre, contentando-se os sábios com metter-lhes mais uma escora. E o poeta, que subjectivamente vê e sente a fórma dos seus ardentes anhelos, e o descobridor ou o inventor que formula, na exaltação das suas cogitações, o gérmen das maravilhas futuras, é o vidente que prophetiza com inexplicável e dolorosa anciedade o desastre, cujo turbilhão divisou. Emfim, o inspirado e intuitivo julgam-se ludíbrios de allucinação e escondem cautelosamente esse desvario.


quinta-feira, 29 de março de 2012

Cartas Perdidas


VI
Stockholmo, 5 de novembro de 1898
(pgs 72-73)

Quando vemos um cego guiando-se apenas pelo tacto, através do dedalo intrincado das ruas de uma cidade e dirigir-se, sem tropeçar, para onde o determina o seu desejo, faz-nos meditar quanto em nós esse sentido era grosseiro e que, apezar das trevas exteriores em que parece estar mergulhado, a serenidade quasi sempre alegre do seu rosto parece conformal-o com essa nova existencia, como si uma luz interna viesse substituir a que lhe falta, e ficaríamos abysmados ao saber que as suas sensações se tornam tão subtis, que as proprias vibrações luminosas das côres se lhe tornam sensíveis e o relevo da fórma tão impressionadora, que alguns têem sido estatuarios.

O exercicio constante que o orgão visual recebia, deixando de existir, derivou para o outro a sua actividade, demonstrando, então, qualidades até ali desconhecidas.

O tacto é o sentido esthetico de onde todos se derivam; é o principal e o mais espalhado pelo corpo todo. Desde a mais tenue fibra ao mais robusto membro, elle ensina, pelo prazer ou pela dôr, a apropriar-se ou afastar-se do que lhe é inútil ou desagradável. É esse o sentido que conduz á procreação, é elle que produz o gosto por cuja sensação alimentamos a constante elaboração material do nosso organismo.

São as ondas sonoras que, ferindo, pelo contacto, o nosso tympano, nos dão a idéa dos sons.
São os raios luminosos que, projectados contra a nossa retina, estabelecem, por seu contacto, a vibração da côr.

É o tacto o sentido que está directa e intimamente ligado á vontade do homem, cujas ordens recebe e cujas sensações transmitte; todos os outros sentidos lhe estão avassalados e, na escala hierachica, encontramos, no fim, a vista precedida pelo ouvido, que só tem relação com o entendimento, que é escravo da vontade.

É o tacto, esse sentido subtil que, existindo mesmo nas dobras mais reconditas do nosso organismo, estabelece essa rêde mysteriosa de nervos, como que servindo de induzido ás correntes externas, transformando-as em intensas sensações e collectando-as no cerebro.